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domingo, 30 de janeiro de 2011

GALPÃO EM TERESÓPOLIS - CRÔNICA

                                      GALPÃO EM TERESÓPOLIS*







Ela vinha nesse pé. Sem comer, com sede. Uns dois dias sem banho. Mas o que é isso comparado ao caos ao redor? Está viva, isso é o que contava. Há tristezas tamanhas, comoções gigantescas, que o corpo, já extremamente exaurido por sacudidas, soluços e choros, acaba por deixar-se entregue a devaneios. Quando a moça viu estava na maior gargalhada.


Com a senha na mão, a máscara no rosto e o corpo cansado da espera, a moça de trinta e poucos anos foi acometida pelo surto de riso. Pessoas aos encontrões para lá e para cá. Via-se nela o sinal de desespero de quem perde a orientação, de ausência da energia que nos conduz de casa para o trabalho e do trabalho para casa, de extinção momentânea da força que nos faz enfrentar as privações e temer perigos e buscar o prazer.

fonte: http://www.exitorio.com.br



O incontrolável acesso de riso da moça incomodava uns chorosos considerando blasfêmia alguém rir quando as pessoas todas entristecidas pela perda da filha, da mãe ou do pai soterrados. Quanto mais com os corpos amontoados num Galpão em Teresópolis, por falta de espaço no IML da cidade. Outras tantas pessoas, padecendo a dor da perda, mal tinham tempo para notar fosse o sofrimento fosse o riso de quem quer que seja.


Os bombeiros, enlameados, que transitavam por ali, rumo aos locais críticos, pouco se importavam com o riso da moça. Eles abraçavam a tarefa de tentar socorrer outras tantas vidas, ou pelo menos trazer tantos os corpos dos escombros a fim de dar aos parentes sobreviventes a possibilidade de conforto. Pois saber-se do paradeiro do familiar, ainda que morto, é melhor que a insensível incógnita.


Os profissionais da saúde, sinônimo de empenho. Polícia, bombeiros, todos fazendo seu melhor. Voluntários de serviços essenciais ali a socorrer os mais necessitados.

Dezenas e dezenas de pessoas com fotos exibindo o riso clicado durante um churrasco, ou uma festa de aniversário de criança ou da vovó comemorando 80 anos, ou uma colação de grau do garoto concluindo o colégio, ou uma viagem de camping onde a menina flertando com um rapaz. Cada foto segura por mãos trêmulas, fatigadas, desesperadas, desconsoladas, quase resignadas. Máscaras enfiadas nos narizes a proteger contra o acre cheiro de defuntos em estado deploráveis.

De repente, o riso dela sumiu tão rápido quanto surgiu. Em meio à espera exaustiva, as pernas bambeando, e a teimosia evitando que se sentasse ou que saísse defronte do Galpão. Na cabeça, as imagens do marido, sorridente, brincalhão. Tinha vezes que o pau comia entre eles. Sempre quando ele vinha com a conversa mole de que tinha feito horas extras, mas o malandro estava no bar tomando umas com os amigos. Nada de traição. Ela é que não gostava nem da mentira nem do bafo da cerveja.




Ela o amava muito. Na perda, ela pôde notar o quanto ele era a sua alma gêmea.

E a avó? Praticamente a criou. A mãe, muito nova, tendo que ganhar o pão dos filhos, passava o dia inteiro fora de casa. Alguém tinha que ficar com as crianças. A moça podia ver a avó agarrada à máquina de costura. Todo dinheiro ganho, que não era muito, servia para completar a renda familiar. A moça sacudiu a cabeça, como para fazer desaparecer as imagens do marido e da avó, mortos pela tragédia causada pelas chuvas.

Deu espaço para a passagem de mais um caminhão frigorífico que se dirigia ao galpão.

O acesso de riso anterior se explicava. Tanto o marido como a avó aparecem sorrindo nas fotos que a moça segura entre os dedos. O sorriso da foto, mostrando a arcada dentária, poderia ajudar na identificação dos corpos, se necessário fosse. Além disso, as fotos traziam um sorriso genuíno, de um momento divertido.

O riso histérico da moça talvez tenha sido uma tentativa de ressuscitar a alegria ali impressa para minorar a opressão que a atmosfera de dor e de desalento provocava nela naquele instante. Ela, diarista, igualmente buscará se erguer, tocando a vida, ainda que à sombra da perda. Ao lado de milhares de outras pessoas, a vontade de viver da moça servirá para reconstruir a cidade.


ronaldo duran, escritor.

twitter.com/ronaldo_duran

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

ronaldo duran - o vento que bate aí bate aqui

Olá, Amigos,


Terminei o quinto livro de crônicas. O título é a Japonesa Pagodeira.

Não foram uma ou duas vezes que me perguntaram por que não abandonar a literatura. Afinal, falam que este hobby consome muito tempo e traz raramente algum retorno financeiro.

Mas vou seguindo na produção... Por que afinal alguém tem que carregar o piano ou varrer a rua...

Tenha um excelente 2011. E que minha teimosia lhe sirva de incentivo ao menos para você persistir nos seus sonhos.


O twitter está de cara nova e mais funcional. Aproveite.


Abraços,


Ronaldo


twitter.com/ronaldo_duran





                               O VENTO QUE BATE AI, BATE AQUI*



A frase soou meio vulgar. Um casal discutindo é terreno fértil para baixaria. Fiz de tudo para me controlar, escapou. Ao telefone ouço a voz confusa, tentando me acalmar. Por mais que ele tente sai capenga a ladainha. Causa do conflito? Teria ele disfarçado na agenda do celular o número da “amiguinha” como sendo o João? Alega que por eu ter apagado o nome dela, quis evitar o bate-boca e por essa razão camuflou a amiguinha num nome masculino.

Exagerei? Temos direito a ter uma amiga. Mas que diabo de amiguinha é essa que precisa deixar uma voz insinuante na secretária eletrônica? Já está virando hábito. Descobri a senha do celular e do e-mail dele. Que culpa tenho se lá colho lenha para discussões?


Triste realidade: quando não estamos fazendo amor estamos brigando. A mágoa fatigante de brigas começa a diminuir a busca pelo prazer. Ele é meu amor. Fiz e faço loucuras. Ultimamente, contudo, percebo como recompensa por meu sentimento uma insistência de sua parte em me contrariar.


Quem me levou a alugar uma casa? Quem me levou a sair da casa dos meus pais? Quem me levou a aprender a cozinhar? Quem me levou ao papel de dona de casa? Ele. Eu fiz minha parte. E ele continua como estivesse solteiro. Seja pela posição que ocupa no emprego seja por cara de pau, o assédio de mulheres o incentiva a agir como eu imagino que faça.


Na noite de natal foi dureza. Ele em casa, mas com uma cara como se tivesse um peso enorme a carregar. Tudo por que estava fora de seu convívio natural: a dos amigos de serviço, a das vagabundas que pegam no pé dele lá no Rio. Sei que ele é mulherengo, que está no seu sangue. Pensei que quando deixássemos de ser só namorados, ele daria um basta. Pelo visto me enganei. Tô querendo sair de Petrópolis e fixar residência definitiva no Rio, só para ter certeza de seus passos.


A ligação vai indo. Tenho vontade de chorar com as desculpas esfarrapadas. O meu prato está esfriando. O restaurante segue com o tumulto da hora do almoço. Como companhia, tenho um amigo. Se eu dou corda para esta amizade tem uma razão. Cara legal. Mas por enquanto estou com a cabeça e coração no meu namorado, namorido... “Então, vou desligar”, digo, “Toma cuidado gatinho...” ameaço, “o vento que bate aí, bate aqui”, faço uma ameaça mais forte. Desligamos.


Tenho pena de mim. Levar um caso no qual se sabe traída, mas que espera pegar o parceiro na cama com outra para ter a desculpa de terminar, é dose. O que deveria contar é se ele me respeita agora, se me trata com carinho, se está do meu lado, se me assume, se a quantidade de lágrimas de frustração não supera a do amor... Pegar na cama é apenas a gota d’água para o que já estava ruim. Que estivesse na cama com mil mulheres, mas que eu me sentisse amada e respeitada por ele, é o que valeria.


O cara na minha frente almoça. Eu o acompanho. Quem sabe ele serviu de apoio para a frase de desabafo que emplaquei ao celular. Saímos do restaurante. Ele me compra flores e bomboms. Diz que é para sua amiga. E segue sem mais palavras. Nem precisava.

* ronaldo duran, escritor, colabora em jornais brasileiros.