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domingo, 27 de setembro de 2009

conto - ronaldo duran*


DANÇANDO COM AS FRALDAS





Feliz de quem nunca teve uma pontinha de ciúme dos famosos, dos que têm a cara exposta na tevê, vestindo uma camisa do entretenimento.


As camisetas são várias. Futebol, novela, música, as mais freqüentes. As miúdas vêm na pele de jornalista, político, economista, sindicalista, até ginecologista. A de escritor, ainda que tímida, detém alguma presença.


Quem tem o rosto conhecido por milhões de brasileiros carrega consigo um algo especial. Assim supõe o público, ainda que a idéia nunca tenha passado pela cabeça do famoso.


Que menina, boquiaberta pelo rebolado duma dançarina de sucesso, não imaginou que se tivesse um quadril mais sensual poderia atrair igual destaque?


A febre de imitar ídolos é antiga.


Tempos atrás se imitava os chefes da tribo, os reis e rainhas. Nos dias de hoje, os meios de comunicação de massa fornecem a nova safra de ídolos.


Quem já não brigou, bateu, apanhou, ou sofreu, ou vibrou pelo time do coração? Quem nunca chorou e sentiu energia sem limite ao ouvir um cantor? Ou quis estar na pele de um galã ou atriz? Ou se enamorou dum artista?


Tarefa árdua procurar explicar o fenômeno da idolatria. Para uns, o motivo é a aparente vida fácil que o ídolo leva. Para outros, são as atitudes da pessoa famosa que dão o tom da admiração.
É justamente o segundo tipo que o conto retrata.


Lembra-se do sucesso de Madonna na década de 80? Um marco. Seu estilo influenciou o ritmo de muitos dançarinos que hoje são profissionais. Dança de alto e baixo impactos. O ritmo da rainha pop americana mexeu com as academias de dança brasileiras.


Em 1987, muitas jovens, ao ouvirem a loira cantar, afastavam as mesas e cadeiras, desobstruindo o espaço, para dançar. Que rádio em solo nacional evitava o som contagiante de Madonna? Até canais de tevê exibiam clipe.


Tânia Paliza Tallini, com 16 anos, era uma das dançarinas anônimas.


Catarinense, mora na cidade onde nasceu: Lages. Só mudou de região, indo para o novo centro. Vive com os pais num apartamento, faz uns dez anos. A infância passou na casa dos avós, na parte mais antiga da cidade. Basta ver a arquitetura predominante nas residências vizinhas.
Como a maioria, a casa possuía um quintal, suficiente para conservar um pé de laranja e um abacateiro, entre árvores não frutíferas, e uma horta, com verduras e legumes que saem dali direto para a panela. A criançada usava o espaço para brincar, correr à vontade. Tudo na maior felicidade. Nem faltavam os xingos quando a avó notava danos na plantação.


A Tânia preferia passar a maior parte do tempo na casa dos avós. Por que escolher ali em vez do bem localizado e confortável apartamento? Simples: a falta de espaço no segundo.


A segunda das filhas da sra. Paliza, a jovem Tallini sentia-se presa no apartamento para realizar o que mais gostava: dançar ao som de Madonna. Na casa de sua avó, pelo menos tinha um quarto ocioso, do tio que havia ido para o interior de São Paulo tentar a sorte como pedreiro há mais de uma década.


A avó vivia preocupada em dar conta das costuras. Apesar da aposentadoria, da ajuda dos filhos e do salário do marido, não largava mão da atividade. Uma maneira de se sentir útil. O preparo do almoço especial de domingo também dava grande satisfação.


Dona Evangelista, a avó, sabia como ninguém o que levava a neta a preferir o humilde casebre. Anos atrás, a garota já intrigava com a mania da dança. Dona Evangelista, àquela época, se emocionou, sabia que sua própria avó era uma dançarina de primeira. Em Sevilha, quem mais que os Palizas para bailar por toda la noche? Para ela, a neta herdou da tataravó o bailado irresistível, encantador. Pena que no Brasil as mulheres da família perderam o rebolado diante da rotina sofrida de imigrantes. As plantações e colheitas de milho e batata sequer davam tempo para tirar a saudosa sesta após o almoço.


A avó evitava perturbar. A neta se viu incentivada a ir lá durante uns bons anos. Pena que tudo tenha um limite. Bastou beirar os dezessete anos para a paz cessar. Era hora de definir uma profissão promissora ou um casamento vantajoso, ambos se possíveis.


Cedendo à natural preocupação materna quanto ao futuro dos filhos, a Sra. Vânia queria uma definição de Tânia. A mais velha cursava química em Joinville. A caçula ganhou uma bolsa para o colegial nos Estados Unidos, a partir do ano que vem. A patroa de dona Paliza, esposa de rico fazendeiro, deu uma força. O marido mantinha contatos importantes no Texas. Helena teve seus méritos. Atenciosa, aprendeu a bater à máquina, atender ao telefone e anotar os recados. Era a secretária mirim do casal.


Tânia é que encalhou. Manifestou uma preguiça incomum pelos estudos, se bem que nunca repetiu de série. Temendo os pais, achou melhor nunca perder um ano letivo. As notas eram razoáveis. Sabia fingir bem. Por dentro, odiava biologia, português e tudo o mais que exigisse uma concentração que ela não estava afim de dar.


Dançar, dançar e dançar era o que gostava.


Certos hábitos regionais, mesmo com o efeito da globalização, da tirania da tevê, conservam-se. Os jovens do interior de Santa Catarina raro têm acesso a toda a liberalidade dos que habitam os grandes centros.


A paixão pela dança teria apenas vazão em casa. Nos bailes e festas, Tânia se sentia meio sem graça. Odiava se expor. Sentimento esquisito, quanto mais se tratando de alguém que curte dança.


O ódio em se expor tinha lá suas razões. À medida que tentou se soltar, dançar livremente algumas vezes, as cabeças-de-bagre a fustigaram com seus preconceitos. Preferiu, pois, recuar. Dançaria o comum diante dos comuns. E o especial guardaria para quando estivesse solitária.
Preconceitos a acompanharam desde tenra idade até meados dos trezes anos, quando ainda ousava dançar na frente dos pais, dos parentes.


_ E essa menina! Nunca pára de saltitar que nem cabrito _ uma tia que falava.


_ Frango destroncado _ brincava um primo mais velho.


_ Mas para mim _ continuava a primeira _ acho que deve ficar de olho aberto... Essas coisas só servem para perder nossas crianças. Tem que ficar de olhos abertos... _ ela repetiu, acrescentando reticências alarmistas.


Os pais silenciaram.


_ Já pensou se um dia decide ganhar a vida rebolando? _ alfinetou.


_ Imagina! Antes morta... filha minha não entra nestas coisas _ berra o pai ao ouvir o disparate.


_ O mundo de hoje está perdido, meu compadre, e essas manias que vêm da cidade grande já puseram a perder muita gente. Depois que viram o juízo, não há santo que dê remédio.


_ Cruz e credo _ uma velhinha fez o sinal da cruz.


_ Culpa dos pais... é dar uma boa coça e tudo se endireita _ o pai ruminou.


Se na aparência os pais pouca atenção deram aos comentários, na prática mudariam em muito a atitude para com Tânia. Vendo a menina dançar, pediam que fizesse alguma coisa: lavar uma louça, costurar, acompanhar a mãe ao açougue. E se ela não tivesse o que fazer, inventavam. Queriam arrancá-la da ociosidade. As músicas agitadas sumiram. O AM voltou a predominar, sempre que os pais estavam em casa.


As filhas eram dependentes economicamente. O querer paterno tinha pleno poder de impedir que as meninas adquirissem os discos com músicas avançadinhas.


Tânia se viu acuada. Temente a Deus e superobediente aos pais, tudo sacrificaria para não os frustrar. Passaria a procurar a casa da avó.


Três meses mais à frente, encontrou um garoto simpático, o Joe Rinkis, vinte e um anos. As palavras gentis e o olhar acolhedor, únicos traços que o diferenciavam. Era caminhoneiro. Junto ao pai, fazia entregas em cidades de Santa Catarina, Paraná e Rio Grande do Sul. Joe e o Sr.

Rinkis estreitaram relações com o pai de Tânia. A simpatia foi mútua.


Após um ano de namoro, Tânia, antipática aos estudos, tinha momentos de desespero. Sonhou fugir de casa, ir para Joinville, Florianópolis ou Curitiba.


Procuraria um lugar onde estudasse, aperfeiçoasse e ganhasse a vida com a dança. Embora gostasse de Joe, não hesitaria em deixá-lo se fosse necessário, se o rapaz se mostrasse relutante em acompanhá-la.


A obediência aos pais a impedia de uma atitude tão drástica.


A avó veio a falecer de doença. O avô, meses depois, seguiria a esposa, motivado pela solidão.


_ Viveram mais de cinqüenta anos juntos. O homem era uma criança... Partindo a companheira, morreria a vontade de viver.


Frases assim justificavam a ida repentina do avô.


Passada a dor pela perda dos avós, Tânia viu-se privada de espaço. A convivência no apartamento cada dia mais insuportável. Os pais, tradicionais, estavam longe do modelo dos que querem os filhos barbados e as filhas mulheres-feita grudadas à barra da sua calça.


O casamento com Joe acenava como uma solução imediata. O pai do rapaz arrumaria uma casa, simples, mas acolhedora.


Meses após o casório, as contrações no ventre anunciam um rebento.


Tânia se realizou como mãe. Gostava sinceramente do esposo. Frustrava-se pela ausência duma carreira, quando se comparava à irmã mais velha, única formada na família, ou à caçula, há dois anos nos Estados Unidos.


O marido, já de posse do próprio caminhão, em média levava uma ou duas semanas na estrada, sem dar as caras em casa.


A médica, após o parto, incentivou Tânia a praticar exercícios físicos.


_ Ajuda e muito.


Mas que exercício físico? Gostava só de dançar.


Um pouco pela ausência do marido, outro tanto pela tensão que é cuidar de filho pequeno, despertou para o antigo hábito de ouvir música na sala.


Joe adquiriu o três em um.


Pela primeira vez um disco da Madonna todinho seu. Punha para tocar e ouvia durante horas. Ouvia e dançava. E como dançava. Aí sim, se excitava para valer. Difícil os vizinhos não notarem a beleza que o corpo da dançarina dona-de-casa conservava. Pouco tempo depois, era mãe pela segunda vez.


Muitas vezes, surpreendia-se quem passava diante do portão de grades pintadas de vermelho. Olhos atentos se arregalavam face à empolgante figura, de menos de 22 anos, dançando com as fraldas, no momento que as pendurava no varal.


Uns a achavam louca. Outros, que a felicidade ali descobriu uma agradável morada.


* Romancista, escreve em vários jornais. Confira no Google.