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sábado, 27 de junho de 2009

ronaldo duran - crônica


VIDENTE?*






_ “Mamãe, tô com meu amiguinho”, disse o menino.


_ “Tudo bem. Daqui a pouco é nosso voo, fique por perto”, a mãe respondeu.


A mãe, moça sueca de cabelos finíssimos e bem loiros. Cabelos que teimavam cair nos olhos, tornando mais difícil a tentativa de ler a revista em português. “Que idioma complicado!”, murmurou. Tinha a determinação de dominá-lo custasse o que custasse. Havia casado com brasileiro. Que situação mais chata ficar surda-muda nas férias no Brasil.


Olhou para o painel. Hora do seu voo. Chamou o filho. O garoto de sete anos veio a contragosto. A brincadeira estava animada. Corriam pelo saguão do aeroporto do Galeão como se estivessem no quintal de casa. Para criança não tem tempo ruim. Chegando perto da mãe, teve a camisa arrumada.


_ “Agora, é ficar comportado”, dizia a mãe enquanto o menino ia acenando para o colega que tomaria o mesmo voo.


_ “Mãe, ele vai com a gente. Quando tiver no ar, posso conversar com ele?”, pediu.


_ “Vamos ver se é possível. Você sabe que é para ficar na poltrona. Lembra-se daquela vez em Copenhague? Chamaram minha atenção por causa de sua brincadeira no corredor. Eu não sabia onde enfiar a cara”.


A careta de birra deixou mais contraído o rosto do menino.


_ “Vamos ver”, a mãe disse mais uma vez.


Durante o dia, teriam a visão magnífica da baía de Guanabara ao decolar do aeroporto. À noite, sobravam as luzes e escuridão. Partiram. O menino manuseava brinquedo eletrônico. Contava com livretos caso tivesse vontade de ler.


De repente, teve necessidade de retirar a foto das filhas de 9 e 11 anos da carteira. As duas meninas e o marido tomaram voo anterior. O casal havia brigado? Nada. Era um acordo.


_ “Olha, eu tive uma ideia. Toda vez que viajarmos de avião serão em voos separados. Assim, caso haja acidente, os filhos não perdem de uma vez os dois pais”, concluiu.


_ “Ah, que ideia!”, ela reclamou nada à vontade.


Ela não gostou do que considerou a princípio brincadeira de mau gosto. Rolou rusga, ciúmes. Quando a poeira assentou, a moça pôde visualizar racionalidade na proposta do marido. Ele não estava delirando.


O acordo foi posto em prática há três anos. Viagem de avião para esta família é tão comum quanto de carro. Primeiro, os pais dele vivem no Brasil. E os dela na Suécia. Morando em Londres desde o tempo da faculdade, quando se conheceram e decidiram trilhar juntos a estrada da vida, o casal tem como rotina ida-e-vinda do aeroporto para visitar os parentes.


_ “Seu marido virou vidente?”, disse a sogra quando soou aos ouvidos a ideia do genro viajar sozinho.


_ “É preocupação, mãe”, a filha defendeu o marido.


Bastou pôr a foto de volta na bolsa para o avião sofrer violenta trepidação. A tempestade e os relâmpagos antes estavam no limite rotineiro. Nesse momento, no entanto, o avião chacoalhou tão forte que as máscaras de oxigênio despencaram do teto. As crianças estavam em pânico. Sentia-se a queda inevitável. O desespero reinava.


A mãe abraçou bem forte o filho que, vendo o rosto dela úmido de lágrimas, também chorou. Na cabeça dela a esperança de que marido e filhas tivessem chegado bem em casa.


_ “Mãe, tô com medo”, disse o menino encolhido nos braços maternos.


_ “Eu também. Mas tudo vai ficar bem...“, apertou o filho contra o peito.


Embora o avião se despedaçou contra o oceano, mãe e filho nem sentiram a água do mar...

*Ronaldo Duran, romancista, colabora em jornais. Visite o autor no Google. Contato: ronaldo@ronaldoduran.com

ivan junqueira de carvalho - direitos humanos


AINDA O MITO DO REBAIXAMENTO PENAL



Ivan de Carvalho Junqueira*



De há muito se houve o falacioso discurso a clamar pelo rebaixamento da idade penal, havendo, inclusive, dezenas de projetos no Congresso Nacional direcionados a tal intento, não obstante a explícita vedação constitucional em se considerando a chamada cláusula pétrea (CF, art. 60, § 4.º, IV).

De tempos em tempos, noticia a mídia, rebeliões e/ou fugas de adolescentes em locais que, a priori, deveriam (re)educar (com o perdão da terminologia) pessoas, trazendo-as de volta ao convívio em liberdade, uma vez esgotado determinado lapso de tempo (por até três anos) o que, à prática, longe está de se reproduzir. O Estado, salvo raríssimas exceções (pontuais, diga-se), vêm concedendo aqueles a quem se atribui a autoria de um ato de natureza infracional e, portanto, passíveis de responsabilização, tratamento não raro semelhante aos adultos cerceados do direito de ir e vir, tão-só retribuindo o mal antes causado, cujas unidades e internatos - de forma reiterada - não vêm cumprindo com a finalidade na qual foram concebidos, aplicando-lhes o método prisional, em meio a práticas e procedimentos de viés ainda “irregular”, ora assistencialista, em detrimento, outrossim, da Doutrina da Proteção Integral preconizada pelas Nações Unidas.

Em outro prisma, certos meios de comunicação acabaram por assumir um papel não apenas de informadores, mas, por vezes, de manipuladores de opinião, trazendo à tona pontos de vista explicitamente direcionados a este ou aquele fim, induzindo a população a acreditar, de modo veemente, que os índices de violência e criminalidade ou, ainda, que a perversidade dos adolescentes são muito mais alarmantes do que se imagina, exacerbando, a partir daí, os vingativos sentimentos de uma sociedade já doente e ansiosa por punição a exigir um maior endurecimento em sede criminal às mais diversas vertentes, pois, sob esta ótica, acreditam, seriam reduzidos aqueles fatores.

Ora, basta analisar qualquer estatística para que se observe qual a verdadeira contribuição dos menores de dezoito anos com relação à ocorrência de condutas equiparadas a delitos. Sob o espanto de muitos, ver-se-á que a parcela, uma vez comparada com a dos imputáveis, é bastante inferior (10%, talvez), sendo que, deste total, mais da metade vêm a incidir sobre o patrimônio das vítimas (roubos e furtos). Os chamados crimes dolosos contra a vida, tais quais, o homicídio e a lesão corporal, v.g., possuem índices ainda mais baixos. Todavia, não é o que se divulga.

A despeito de outras ponderações, comenta-se, também, que na atual conjuntura, com o “avanço” das sociedades e à era da informação, a faixa etária de dezoito anos seria, supostamente, elevada, considerando-se que indivíduos com menor idade já teriam o discernimento suficiente para saber o que é certo ou errado. Ninguém duvida. Partindo-se daí, criou-se um verdadeiro mito em face do reducionismo da idade de responsabilização penal para, quem sabe: 16, 15, 14, 13 anos... Nos países de tradição “common law”, por exemplo, punem-se crianças com apenas sete anos, tal o caso de algumas regiões dos Estados Unidos, o que, data vênia, se mostra incompreensível, ainda que relevada a diferença do referido sistema a abarcar outros costumes. Já na Inglaterra, o mínimo penal se situa em dez anos. Na América Latina, adota a Argentina, os dezesseis anos.

Por óbvio, uma criança com sete ou oito anos já possui um grau de discernimento, isto é inegável. Sem contar que, à égide contemporânea, o volume de informações então passado a ela, impõe-se numa velocidade surpreendente, seja em âmbito familiar ou em qualquer outro veículo, vindo a moldar o pensamento do “menor” (expressão ainda usual, embora pejorativa). Contudo, o supracitado fator não deve ser visto de forma exclusiva, preponderante, isto porque, a questão não é tão simples. Hipoteticamente, em se recepcionando o reducionismo penal, ademais da afronta à própria Magna Carta brasileira, quão supramencionado, esta arbitrariedade acarretaria uma infinidade de outros problemas, não bastassem os existentes. Em termos práticos, superlotaria ainda mais os presídios brasileiros, onde, um condenado pelo furto de meia dúzia de pães vem a cumprir pena no mesmo local que um indivíduo punido por um atentado contra a vida de outrem ou, quem sabe, um traficante de drogas, desprezando-se, outra vez, a Lei Maior ao afirmar que “a pena será cumprida em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado” (CF, art. 5.º, XLVIII).

E o que é pior: ao final, chegar-se-á à triste constatação, já evidente, de que os crimes então perpetrados não diminuíram. Neste momento, será tarde demais.

Com efeito, o excessivo apelo ao consumismo muito estimula, embora não seja desculpa, os seres humanos que, dia-a-dia, mantidos são à margem do sistema social pela falência e mesmo incompetência do Estado e de sucessivos Governos cegos socialmente, enquanto fomentadores às condições mínimas de subsistência de todo e qualquer cidadão. Constata-se, outra vez, a terrível imposição dos meios de comunicação de massa em seu célebre posicionamento à difusão da chamada “ideologia do ter”, a incentivar a aquisição de bens de consumo, ao despertar do desejo e da cobiça de muitos, já cansados de nada possuir.

O respeito à criança e ao adolescente é pressuposto fundamental à recepção do próprio Estado Democrático de Direito, pluralista e defensor dos direitos humanos.


* Bacharel em Direito. Seu mais recente livro publicado é: Do ato infracional à luz dos direitos humanos (2009).

domingo, 21 de junho de 2009

nelson valente - todos na escola


TODOS NA ESCOLA



por Nelson Valente*



No Japão, o ensino é obrigatório durante os primeiros nove anos de escolarização (seis no primário e três no secundário inferior). A partir daí, tudo é opcional. Em conseqüência, praticamente todos os japoneses dos seis aos 15 anos de idade encontram-se nas escolas, num fenômeno elogiável de universalização do ensino.


Alcançando esse ideal, os educadores agora se voltam para a discussão em torno da qualidade do ensino, procurando-se valorizar a criatividade, de que eles andam bastante divorciados. Condena-se hoje o excesso de memorização nas escolas, quando o desejável é a compreensão maior e melhor das lições transmitidas por seus mestres. Outro aspecto a ser ressaltado é o excesso de competitividade, responsável pela enorme freqüência de suicídios entre os jovens.


Não serve estudar em qualquer escola, mas nas que têm renome, sobretudo universidades. As melhores oportunidades são oferecidas aos que têm históricos escolares exemplares, o que é compulsado pelos caçadores de talentos das empresas japonesas. Para oferecer essas oportunidades aos seus estudantes, o Japão investe 12% do orçamento em educação. Os Estados Unidos investem nada menos de 13,6 %. Numa comparação sem maior análise, do que faz o Brasil.


O problema é que temos uma dívida social imensa, que precisa ser resgatada com investimentos maciços na educação. Enquanto isso não se fizer, continuaremos a conviver com números e carências verdadeiramente absurdos. Em plena campanha eleitoral, esses fatos afloraram nas promessas nem sempre bem intencionadas dos candidatos, que falaram maravilhas do que irão fazer, se eleitos, para logo depois esquecer tudo.


O jeito é marcar os seus nomes, para efetuar a cobrança devida.


*Professor universitário, jornalista e doutor em Comunicação.

marcos brunini* - psicologia evolucionista









POR QUE ACREDITAMOS EM DEUS II?[1]







Satoshi Kanazawa[2], 28/03/2008.













A religião é um universal cultural. Os seres humanos, em todas as sociedades conhecidas, praticam algum tipo de religião. Portanto, é tentador acreditar que a religiosidade é parte da natureza humana evoluída, que seres humanos são evolutivamente projetados para serem religiosos. Bem, a resposta é sim e não.

Em meu último post, discuti como a Teoria de Manejo do Erro de Haselton e Nettle explicam a leitura intersexual de mentes, por que homens sempre superinferem o interesse sexual das mulheres por eles. Uma das grandes características da Teoria de Manejo do Erro é que ela pode explicar uma grande variedade de fenômenos. É uma teoria verdadeiramente geral.

Imagine que você é nosso ancestral vivendo na savana africana, 100.000 anos atrás, e aí se depara com alguma situação ambígua. Por exemplo, você ouviu alguns ruídos abafados bem próximos, durante a noite. Ou então, você estava andando na floresta, e uma grande fruta cai do galho de uma árvore e bate na sua cabeça. O que está acontecendo?

Em uma situação ambígua como essa você pode atribuir o fenômeno a forças impessoais, inanimadas, e não intencionais (por exemplo, o vento soprando delicadamente e provocando um barulho sussurrado entre os arbustos e as folhas, ou a fruta madura que cai pela força da gravidade e o atinge na cabeça por puro acidente) ou a forças pessoais, animadas, e intencionais (por exemplo, um predador escondendo-se no escuro, preparando-se para atacá-lo, ou um inimigo que se esconde entre os galhos da árvore e atira frutas em sua cabeça). A pergunta é: o que está acontecendo?




Mais uma vez, a Teoria de Manejo do Erro sugere que, em sua inferência, você pode cometer o erro do “Tipo I” falso-positivo, ou erro do “Tipo II” falso-negativo, e estes dois tipos de erro carregarem conseqüências e custos bastante diferentes. O custo de um erro falso-positivo é que você se torna paranóico. Você está sempre olhando em torno e atrás de si, procurando predadores e inimigos que não existem. O custo de um erro falso-negativo é que você será morto, abatido por um predador ou inimigo quando você menos os esperava. Obviamente, é melhor ser paranóico do que morto, assim a evolução deve ter projetado uma mente que superestime a ocorrência de forças pessoais, animadas, e as intencionais, mesmo quando nenhuma delas existe.

Diferentes teóricos chamam esta tendência humana inata de cometer mais erros falso- positivo do que erros falso-negativo (e consequentemente para ser um pouco paranóico) de “viés animista” ou “mecanismo detector de atividade”. Esses teóricos argumentam que as origens evolucionárias das crenças religiosas em forças sobrenaturais podem ter vindo de tal viés cognitivo inato para cometer erros falso-positivo, e assim superinferir a presença de forças pessoais, intencionais e animadas por trás de fenômenos perfeitamente naturais.

Você vê um arbusto em chamas. Poderia ter sido causado por uma força impessoal, inanimada, e involuntária (relâmpago que cai no arbusto e o incendeia), ou poderia ter sido causado por uma força pessoal, animada, e intencional (Deus que tenta se comunicar com você). O viés animista predispõe você a optar pela última explicação. Predispõe você a ver as mãos de Deus em atividade por trás de fenômenos naturais, físicos, cujas causas exatas são desconhecidas.

Nesta visão, a religiosidade (a capacidade humana para acreditar em seres sobrenaturais) não é uma tendência evoluída per se; apesar de tudo, a religião não é em si adaptativa. Em vez disso é um subproduto do viés animista, subproduto da tendência para ser paranóico, que é adaptável porque pode conservar sua vida. Os seres humanos não evoluíram para serem religiosos; evoluíram para serem paranóicos. E os seres humanos são religiosos porque são paranóicos.

Alguns leitores podem reconhecer este argumento como uma variação da “Aposta de Pascal”. O filósofo francês do século XVII, Blaise Pascal (1623-1662), argumentou que dado que ninguém pode saber com certeza se Deus existe, é, todavia, racional acreditar Nele. Se a pessoa não acredita em Deus quando Ele na verdade existe (erro falso-negativo), essa pessoa vai passar a eternidade no inferno e na danação, ao passo que se acredita em Deus quando Ele na realidade não existe (erro falso-positivo), vai desperdiçar somente uma pequena quantidade de tempo e de esforços gastos em cultos religiosos. O custo de cometer o erro falso-negativo é muito maior do que o custo de cometer o erro falso-positivo. Por isso, racionalmente se deve acreditar em Deus.

Entretanto, Pascal não pode explicar porque os homens sempre cantam as mulheres, enquanto que Haselton e Nettle podem. A sugestão intrigante aqui é que nós podemos acreditar em Deus e nas forças sobrenaturais pelas mesmas razões que os homens superinferem o interesse sexual das mulheres por eles e fazem tentativas repudiadas o tempo todo. As crenças religiosas e a comunicação sexual falha entre os sexos podem ser consequências do cérebro humano projetado para o manejo eficiente do erro, a fim de minimizar os custos totais (mais do que a quantidade total) dos erros. A gente pode acreditar em Deus pela mesma razão que as mulheres têm para continuar esbofeteando Beavis e Butt-head tentando pô-los na linha.



*Marcos Brunini, pesquidor e tradudor, escreve nesta coluna quinzenalmente.










[1] Why do we believe in God? II, disponível em http://www.psychologytoday.com/blog/the-scientific-fundamentalist/200803/why-do-we-believe-in-god-ii, acessado em 22/01/2009

[2] Satoshi Kanazawa, psicólogo evolucionista, leciona na London School of Economics and Political Science e é coautor (com Alan S. Miller) de Por Que Homens Jogam e Mulheres·Compram Sapatos - Como A Evolução Molda Nosso Comportamento. Rio de Janeiro: Prestigio Editorial. 2007.