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domingo, 14 de fevereiro de 2010

crônica - ronaldo duran


HAITI




_ “Viu quem está te olhando?”, disse o colega ao lado.




_ “Vai ver que só está tirando onda comigo...”, o soldado respondeu quase sussurrando.




_ “Pô, cara, acredita no teu taco”, o outro insistia quando o comandante ergueu a voz com o explícito propósito de silenciar os engraçadinhos.




Toda tropa alinhada. No rosto dos soldados um misto de apreensão e orgulho. Escolhidos a dedo, dali a poucas horas se juntariam às tropas de ajuda humanitária que o Brasil fornece às forças de paz das Nações Unidas no Haiti, país devastado por terrível guerra civil e presidente déspota. O recruta mal pôde se conter de alegria quando, há meses, soube que estava na lista dos que partiriam na missão de ajuda humanitária.




Empolgado, procurou livros e dicionários para adquirir os rudimentos do francês. Pelo menos um ça-va?, um pas-de-tous, um je-suis-brésilien-et-je-suis-ici-pour-t’aider ele poderia arriscar. O inglês, ele já tinha noções bem firme desde tenra idade. E o que leva um sujeito a dedicar-se ao Exército? Da parte dele, ele responderia que é vontade de servir ao Brasil, de dar orgulho a sua mãe simples lá da periferia, e mostrar para a garota que ele curte que ela poderia ter confiado no futuro dele, que ele poderia não ter feito faculdade ou flanado em Nova Iorque, mas que mesmo assim valia a pena ser investido. Claro, antes de ela ter terminado tudo e ter começado a namorado o carinha da Poli.




Diante da bandeira do Brasil, e do comandante desfiando o rosário de congratulações à bravura dos soldados, a cabeça dele só se fixava nela. O que ela veio fazer ali justamente na hora que ele estava se despedindo? Tudo bem que ela era amiga da mãe dele. Mas daí a se abalar de sua casa e vir vê-lo. E cadê o carinha da Poli? Pelo menos ela está sozinha e ele pode apreciar a beleza da musa. O que diriam as pessoas presentes se soubessem que o impulso para se tornar um soldado corajoso era querer impressionar a menina que se ama? No mínimo, o sujeito é louco.




Na manhã seguinte, o avião pousara no aeroporto nos arredores de Porto Príncipe. Ele se assustou. O país pareceu-lhe uma grande favela. “E a gente ainda reclama do Brasil?”, disse para si. Uma miséria nem de longe comparada às das favelas nacionais. O que a guerra e arrogância não fazem a um país? Como a classe no poder pode detonar um povo no que ele tem de mais precioso: a gana de viver e vencer.




À primeira noite, o recruta, apesar da novidade do país, ia dormir embalado pela imagem da musa lhe imprimindo um beijo no rosto e sussurrando em seu ouvido você-merece-uma-menina-melhor-do-que-eu. Nem deu para se ajoelhar nos pés dela e dizer que ela era a perfeita. Nada. A tropa estava de partida. E o comandante não era do tipo que quisesse perder tempo com fricotes sentimentalistas. Além do que o jeito como a ex-namorada ia se despedindo era a fórmula mágica para mandar o sujeito pastar sem, contudo, ser ou parecer grosseira e insensível. “Mulheres são expert nisso, meu camarada”, diria um bon-vivant amigo seu.




Meses no Haiti pareciam dias no Brasil. Não havia motivo para comemorar o domingo nem fim de semana. Ir ao shopping e zoar com a galera? Que nada. No lugar, sentinela, sentinela, sentinela... Impedindo saques, estupros, mortes sumárias por milícias oficiais ou não.




Apesar de viver recebendo telefonema, o que mais matava a saudade do rapaz da ex-namorada era as cartas e a foto dela, tirada em cima da laje. Não era todo dia que ele se perdia olhando para a foto. Tinha vez que levava até duas semanas. Depois que descobriu que secar a foto dela, linda daquele jeito, dava deprê, passou a evitar.




Mas naquela segunda-feira à noite ele ficou encanado e pegou a foto, leu e releu a carta do tempo que eram namorados e desabafou: “pena que não demos certo. Que tu seja feliz”.Era segunda-feira dia 11 de janeiro de 2010. Na manhã seguinte ele, cartas, foto e outros colegas estariam mortos, soterrados para sempre em solo hatiano.



*Ronaldo Duran, romancista. Contato: ronaldo@ronaldoduran.com


FONTE IMAGEM: http://www.tribunadosol.com.br/coluna.asp?id=59470&s=3

educação - nelson valente*


DESCONHECER AS LÍNGUAS SEMPRE PRODUZ A INTOLERÂNCIA




Agora, a unificação ortográfica tornou-se viável, de certa forma respeitando-se ainda o critério fonético (ou da pronúncia) em que se baseia na ortografia portuguesa. Mas desde logo um fato que nos tranquiliza: morreu o trema em palavras portuguesas ou aportuguesadas. Era um sinalzinho que não servia mesmo para nada.


Cabe-nos denunciar os maus uso da língua nessas formas de comunicação, para que seus erros não venham a ser motivo de vergonha para nós. Entre as incorreções que destoam no uso da língua, são frequentes pequenos descuidos, até perdoáveis, mas há casos de barbarismo contra a pureza da língua nos aspectos sintáticos, regenciais, ortográficos, sem falarmos de troca tão comum de tratamento, como também de organização ilógica de ideias, o que acarreta, frequentemente, ambiguidades e interpretações errôneas de pensamento. A língua é uma força biológica: não se pode modificá-la com uma decisão política. Pode-se, quando muito, influenciar o uso. É uma função dos jornalistas, escritores, professores e da mídia.


Um bom uso mostra-se pela flexibilidade com que as palavras são aceitas. Todas as línguas estão repletas de palavras estrangeiras que foram naturalizadas. Os editores, os donos de televisão, jornais e os críticos literários não entenderam que houve uma revolução espiritual, que o nível geral subiu. Comunidade Linguística da Língua Portuguesa: em que se luta para que o português seja reconhecido também como língua oficial da ONU; em que o português vai alcançando o 4º lugar entre as línguas mais falada no planeta. Não podemos deixar que ela se desfigure e se deturpe de maneira tão galopante, como está acontecendo nos meios de comunicação. Em geral, o erro linguístico depõe contra quem o cometeu.


Convivemos neste século (desde 1911) com duas ortografias oficiais da língua portuguesa, o que sempre foi prejudicial. Aí pode estar a razão de não ter sido o português acolhido, na família ONU, como língua oficial. Em 1931 estabeleceu-se o primeiro acordo ortográfico em ter Brasil e Portugal, sem efeitos práticos. A convenção de 1943 e depois as de 45, 71 e 75 mantiveram sérias divergências. Portugal rejeitou o acordo de 86, com a participação de toda a comunidade lusófona, mostrando que a imposição de uma unificação ortográfica absoluta jamais seria aceita.


Cada língua propõe um modelo de mundo diferente. Por isso não é possível tentar instituir uma língua universal. É preciso, portanto, tentar passar de uma língua para outra. Eu sou a favor do polilinguísmo. A diversidade das línguas é uma riqueza. Esse é um fato indiscutível, ligado, provavelmente à natureza humana. Durante séculos, não desfrutamos desse tesouro, porque sempre houve uma língua que predominava sobre as demais: o grego, o latim, o francês, o inglês. Creio que, dentro de uma geração, teremos uma classe dirigente bilíngue. Desconhecer as línguas sempre produz a intolerância. Conhecê-las, porém, não é garantia de tolerância. Nos Bálcãs, os sérvios e os croatas entendem-se, e contudo... No passado, os que se revoltavam mais ferozmente contra o colonizador haviam estudado na metrópole. Pode-se massacrar uma população conhecendo-se perfeitamente sua língua e sua cultura.


O conhecimento torna-se, então, um elemento de irritação ou de rejeição, do mesmo modo que um marido e sua mulher podem acabar brigando cada vez mais à medida que vão convivendo. A língua tem razões que a própria razão desconhece. Minha filha, que é bilíngue, pediu à sua mãe uma noite dessas: “Mamãe, conte-me uma Geschichte.” Para ela, Geschichte é o conto, a história de Chapeuzinho Vermelho. Para nós, é História em 12 volumes.


Os franceses fazem de conta que brigam com o inglês, mas têm medo mesmo é do alemão. Desde a queda de Berlim, a Europa do Leste transformou-se num bolsão de poliglotismo alemão e há muita probabilidade de que o alemão se imponha na Europa! Nunca, no mundo, alguém conseguiu impor a língua estrangeira dominante.


Os romanos foram mestres do mundo, mas seus eruditos conversavam em grego entre si. O latim se tornou a língua europeia quando o império romano desmoronou. No tempo de Montaigne, o italiano era o vetor da cultura. Depois, durante três séculos, o francês foi a língua da diplomacia. Por que o inglês, hoje? Porque os Estados Unidos ganharam a guerra e porque é mais fácil falar mal o inglês do que falar mal o francês ou o alemão. O que não impede que os franceses falem de uma "colonização" de sua língua pelo inglês.


O filólogo Antônio Houaiss costuma dizer que “a língua portuguesa tem enorme vitalidade e cresce toda noite”. Quando dirigiu os trabalhos de montagem e edição do Vocabulário Ortográfico, uma obrigação da Academia Brasileira de Letras, totalizou cerca de 350 mil verbetes, mas hoje desconfia que o número possa ter subido para 400 mil.


O acordo ortográfico de unificação da nossa língua não passa de 2% desse total, estaremos diante de aproximadamente oito mil vocábulos para serem apreendidos pelos que usam o idioma como ferramenta de trabalho, como é o caso de professores, escritores e jornalistas.


Segundo o acadêmico, Arnaldo Niskier: “É preciso, porém, ainda mais agora com a decadência do ensino e a enormidade de erros veiculados pelos meios de comunicação, distinguir o que pode ser (ou vir a ser) que agride o vernáculo, transfigurando-o, impregnando-o de palavras e expressões alienígenas, absolutamente dispensáveis, tolos modismos e até mesmo erros crassos”. A unificação chegou em boa hora.


*É professor universitário, jornalista e escritor. Contato: nelsonvalenti@hotmail.com