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domingo, 26 de abril de 2009


MALAS PRONTAS



por ronaldo duran*


ACOSTUMADOS a bater continência e plena consciência da hierarquia, sequer tinha notado o rosto do capitão de fragatas Sr. Dirceu Tamandaré da Silva, meu instrutor de maquinaria. Foram quatro anos na Escola Naval, sem intimidade. Temos tantas atribuições, conteúdos a digerir, exercícios físicos que nos deixam exaustos, que raramente nos apercebemos da hierarquia que aos olhos dos civis parece abominável.



DUAS semanas para a colação de grau. Quantas noites em claro, tormentos. Contando o Colégio Naval, são sete anos na pele de cadete. Sim, lá na Praça Mauá, Praça XV, onde se concentram os soldados, cabos, sargentos, eu sentia na pele o que era ser invejado. Para eles, eu era o riquinho, o cheio de mordomias. Para eles, eu era o que a maioria dos jovens de Ipanema e Copacabana é para os garotos de Bangu e Realengo.


APESAR de o ego inflar, sei que tudo que conquistei foi com muito esforço. Nada de mão beijada. Quase um ano indo de Bangu a Cascadura, para o cursinho Pré-Militar Tamandaré. Levava marmita. Acordava cedo. Muita cotovelada no ônibus. Fins de semana e feriado, os colegas da rua azarando na praia, festas e eu enfiado nos livros. Eles babando nas gatas e eu nos nauseabundos exercícios de física e química.


SR. Dirceu me despertou. O pôr do sol, a Avenida Brasil. Os carros, os ônibus lotados. As pessoas autômatas. Ele segredou: “A única certeza da vida é que a morte vem nos buscar. Bom que estejamos com as malas prontas”. Menos de uma hora de conversa vaga. Quem sabe a frase saiu sem qualquer pretensão, apenas o de estar pronto para partir desta vida a qualquer hora. Daí policiar as atitudes, para na hora de prestar contas a Deus ter a consciência mais limpa possível?


PODE ser. Para mim, contudo, soou impactante. Revisar a ambição que por vezes me mergulha numa fútil rotina, na louca corrida para o mesquinho prazer. Aí tudo pára: o status, o carro novo, a casa grande, inclusive a cegueira religiosa ou ideológica. Tudo cessa no instante que o trem da morte chega e só nos resta pegarmos a mala, nossa consciência de atos cometidos, e adentrarmos nele, seguindo viagem sabe lá para onde.


DAQUI a pouco estarei à frente do Sr. Presidente da República Federativa do Brasil o sociólogo Fernando Henrique Cardoso. O protocolo e a pompa marcarão presença na formatura dos cadetes da Escola Naval em 1994. Jurarei a bandeira. Erguerei minha espada. Serei oficial da Marinha. Sonho antigo. O terreno lá na Barra da Tijuca que há três anos venho pagando, quitarei. O ditado do Capitão Dirceu me acompanhará, um pouco a contragosto, nesse momento que deveria ser exclusivo de felicidade.

* Romancista e contista, colabora com crônicas neste jornal toda semana. Contato como autor: ronaldo@ronaldoduran.com


O que estou lendo?

The Gold Coast by Nelson Demille ( romance em inglês)

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