QUE DIREITOS?
por Ivan de Carvalho Junqueira*
Pretendemos tecer ao curso do presente artigo, com base, também, em nosso mais recente livro publicado: “Do ato infracional à luz dos direitos humanos”, singelas considerações acerca do conjunto de direitos a que fazem jus crianças e adolescentes, atentando-se, em especial, diante daqueles mais adstritos ao adolescente em conflito com a lei.
Ab ovo, convém enfatizarmos, ainda que óbvio transpareça, vivenciarmos, a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988 e, à seqüência, com a Lei n.º 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente) e, mesmo antes, sob a luz da Convenção sobre os Direitos da Criança, de 1989, ratificada pelo Brasil no ano seguinte, o marco da proteção integral de direitos.
Superada, a princípio, a concepção “menorista”, há bem pouco vigente à seara da infância e juventude, mas cujos resquícios ainda persistem, abandonou o Estado, ao menos formalmente, o viés da situação irregular, cujos denominados “menores” haveria de cooptar, entendamos bem: pobres, desvalidos e desassistidos socialmente, sitos à margem das políticas públicas, vez que aos de maior poder aquisitivo, oriundos de abastadas famílias, diverso fora o atendimento.
Assim sendo, de vaga categoria sociológica a precisa categoria jurídica, temos hoje por reconhecido o protagonismo infanto-juvenil, razão pela qual passou-se a considerar, legitimamente, crianças e adolescentes quão sujeitos de direito, e não mais mero objetos de intervenção, como no “passado”.
Até este momento, nada de inovador apresentamos. Cremos, todavia, ser de elevada valia a lembrança àqueles precedentes, notadamente, ao decorrer de nossas práticas cotidianas. Atualmente, falar em direitos e deveres soa corriqueiro e mesmo usual. A bem pouco, porém, ao ano de 1896, nos Estados Unidos, noticiava-se o caso da menina Marie Annie defendida, àquele instante, em juízo, pela Associação Protetora dos Animais. Hoje, século XXI, crianças e adolescentes continuam sendo, ao lado das mulheres, das maiores vítimas de conflitos armados e de guerras, de violência sexual, inclusive, sem desprezo a outras práticas, como a de clitorectomia, presente n’algumas regiões ou, mesmo, de matrimônio forçado, a que estão obrigadas em determinados países. São, pois, muito mais vítimas de violência do que vitimizadores.
Em dezembro passado, completara a Declaração Universal dos Direitos Humanos, o seu 60.º aniversário. Não obstante tratar-se de um conjunto ético de valores e princípios, pós-Holocausto, não sendo lei obrigatória, entretanto, à égide de uma concepção universalista de direito, embora quase natural, inerente a todos, sabemos, de antemão, que muito há que se fazer, dadas as constantes violações aos direitos humanos, a bem dizer, diárias, a que – todos – estamos sujeitos. A propósito, os direitos humanos não são para “bandidos”, enfatize-se, uma vez mais, como insistem em difundir alguns.
No que concerne, mais precisamente, ao adolescente em conflito com a lei, consolidaram as Nações Unidas, sem desprezo a outros importantes documentos, primordial leque de parâmetros então direcionados aos autores de um ato de natureza infracional, entre as quais: as Regras Mínimas para a Administração da Justiça da Infância e Juventude (Regras de Beijing), as Diretrizes para a Prevenção da Delinqüência Juvenil (Diretrizes de Riad) e, finalmente, as Regras Mínimas para a Proteção dos Jovens Privados de Liberdade. De fato, os anos oitenta e noventa do último século foram bastante férteis neste sentido, à difusão de leis e normativas fundamentais ao reconhecimento, mesmo à privação de liberdade, de direitos e deveres (não se vislumbra destes sem aqueles, e vice-versa), ao seio do sistema socioeducativo.
Em sendo adolescente, há de recair sobre este, sem dúvida, consistente mecanismo de responsabilização (em não poucos casos, mais severo que a um adulto), vide o disposto na legislação especial (Lei n.º 8.069/90), podendo conduzi-lo, notadamente, à incidência de condutas mais gravosas, tal qual o ato equiparado ao homicídio simples (Código Penal, artigo 121, caput), não obstante a natureza excepcional de toda e qualquer medida e, mais especialmente, daquela de internação, à privação de sua liberdade (ECA, artigo 121, caput), de seu jus libertatis, de seu convívio comunitário, devendo, a partir daí, submeter-se a um amplo e variado número de regramentos, necessários, desde que plausíveis... em observância ao princípio constitucional da legalidade por até três anos.
Em se partindo de alguns princípios informadores, tal qual aquele, sem jamais minorar a relevância de outros, todos indispensáveis, elencou o diploma infanto-juvenil premissas das mais fundamentais à recepção de uma política pública e social angariadora de uma proteção integral de direitos, como supramencionado, o que se depreende, facilmente, da leitura ao seu artigo 1.º.
De acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente, artigo 94, compete às entidades executoras de medida de internação extenso rol de obrigações. Basta dizer, verbi gratia, observar os direitos e garantias de que são titulares os adolescentes (inciso I).
Veja-se: adolescentes. Reafirmamos isto, pois, em nenhum momento adotou a lei federal, como falado corriqueiramente, a nomenclatura adolescente “infrator”, mas, sim, adolescente em conflito com a lei, a quem se atribui a prática de um ato infracional ou, ainda, adolescente privado de liberdade. Em abandono às teorias lombrosianas, não se trata de condição inata, inerente, quão um atributo, pejorativo, ao jovem protagonista de uma infração, como se, desde o nascimento ou mesmo antes pudessem alguns afirmar, com convicção, de modo fatalista, ser este indivíduo, potencialmente, um provável “delinqüente”. Trata-se, em oposição, de uma situação momentaneamente vigente, num dado momento de sua vida, a ensejar, n’alguns casos (preferencialmente, quando da incidência de condutas mais gravosas), o cumprimento de uma medida socioeducativa. Vale lembrar, ao dizer de Antonio Carlos Gomes da Costa, que “não estamos diante de um infrator que, por acaso, é um adolescente, mas de um adolescente que, por circunstâncias, cometeu ato infracional”. Ressalte-se serem os adolescentes o grande efeito, e não causa, defronte às minguadas políticas públicas existentes. Tal entendimento é de fundamental valia à nossa práxis, inclusive.
Percebemos, mesmo dentro do sistema de justiça juvenil, certas dificuldades em face disto. Em se procedendo assim, adolescentes transformam-se em “números”, “coisas”, em “mais um”. Cediço é que a despeito de todos os esforços, há quem careça – ainda –, tal como para o senso comum, de compreensão diante da real importância de se conceder um atendimento socioeducativo de máxima qualidade, alicerçado no reconhecimento efetivo de cada adolescente enquanto ser humano e pessoa em desenvolvimento, portador de dignidade, respeitando-o, também, à sua individualidade, devendo agir, sobretudo, com compromisso e responsabilidade, afinal, “os funcionários responsáveis pela aplicação da lei devem cumprir o dever que a lei lhes impõe, servindo a comunidade e protegendo todas as pessoas contra atos ilegais, em conformidade com o elevado grau de responsabilidade que sua profissão requer” (Artigo 1.º, Código de Conduta para os Funcionários Responsáveis pela Aplicação da Lei), por uma questão ética, de princípio, para além da razão de ofício.
Não concordamos com a prática de um ato infracional equiparado a um homicídio, roubo ou estupro, isto também nos aflige. Enxergamos, destarte, inúmeras outras formas, pacíficas, à resolução de conflitos. E assim há de ser, afinal, vivemos em coletividade, indissociavelmente e, desde o nascimento, ao desenvolver histórico do Estado e das sociedades, vinculados somos a um pacto social. Atitudes estas, de violação ao direito de outrem, a também nos causar espanto, de afronta aos direitos humanos. O poder do Estado, contudo, não é ilimitado. Querer reavivar vindicta privada, despida de quaisquer garantias, soa absurdo.
Clamores outros, dos mais simplistas, sobre o reducionismo da idade de imputabilidade penal no Brasil para 16, 15, 14 anos... ou mesmo do aumento para com o tempo de cumprimento de uma medida socioeducativa, muito especialmente, de internação, por parte dos adolescentes, alardeados são a cada esquina ancorados no oportunismo e sensacionalismo de alguns meios de comunicação. No que tange àquele, alerta-nos as Regras de Beijing, que: “Nos sistemas jurídicos que reconheçam o conceito de responsabilidade penal para jovens, seu começo não deverá fixar-se numa idade demasiado precoce, levando-se em conta as circunstâncias que acompanham a maturidade emocional, mental e intelectual” (Responsabilidade Penal, item 4.1).
Adiante, brinda-nos o ECA acerca dos direitos do adolescente ora privado de liberdade, ao curso de seu artigo 124 e incisos, sem desprezo a tantos outros, constituindo enumeração meramente exemplificativa, não taxativa.
Respaldados estamos num grande leque de normativas nacionais e alienígenas, como sabido. Necessitamos, doravante, da aprovação da Lei de Execução de Medidas Socioeducativas, cujo projeto já existe, consolidando, assim, o já disciplinado pelo Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo – SINASE.
Ainda temos de caminhar. O número de adolescentes hoje internos, aos quais se impôs, previamente, medida privativa de liberdade, de extrema ratio, ainda é bastante alto, o que independe da vontade da entidade executora, não se coadunando, neste diapasão, com o disposto na própria legislação especial, a clamar pelo seu estabelecimento tão-somente quando da absoluta impossibilidade à imposição de medida de natureza diversa, i.e., em meio aberto. Parte do Poder Judiciário pátrio ainda reluta à afirmação do contrário.
Parafraseando Eduardo Galeano:
Ella está en el horizonte. Me acerco dos pasos, ella se aleja dos pasos. Camino diez pasos y el horizonte se corre diez pasos más allá. Por mucho que yo camine, nunca la alcanzaré. Para que sirve la utopia? Para eso sirve: para caminar.
A D.W., in memoriam, dedico o presente artigo.
*Bacharel em Direito, funcionário da Fundação Casa-SP, escreve na área de Direitos Humanos. Seu mais recente livro publicado é: “Do ato infracional à luz dos direitos humanos” (2009).
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