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sábado, 29 de agosto de 2009

ivan de carvalho junqueira - direitos humanos

fonte: fashionkillsme.wordpress.com


DIREITOS HUMANOS, CIDADANIA & SEXUALIDADE*


Como sabido, junho passado foi o “Mês do Orgulho LGBT” em que, mais acintosamente, são transportados à tona, uma vez mais, extenso e não menos relevante rol de reivindicações, muitas das quais, ainda insistentemente não atendidas, em que pese algumas iniciativas, da parte de organismos governamentais e não governamentais, em especial, nos últimos anos, em se tendo por escopo, in concreto, o legítimo exercício à igualdade. Não apenas na lei, ao construir de magníficas palavras, mas à prática.

A propósito, o lema do 13.º Mês do Orgulho LGBT de São Paulo, promovido pela Associação da Parada GLBT foi: “Sem Homofobia, Mais Cidadania: pela isonomia dos direitos!”.

sessenta anos asseverou, brilhantemente, a Declaração Universal dos Direitos Humanos o que se segue: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade”, à luz do artigo I. Vivenciávamos o término de mais uma guerra, ao chocar das atrocidades de Hitler, de pessoas vistas quão objetos, quando muito, descartáveis. Ainda que carecedora de força compulsória, na medida em que nenhum Estado é obrigado a aderi-la, inovou ao contemplar, num só documento, dos mais primorosos princípios e garantias, a despeito de outros, adstritos a todos e a cada qual de nós, independente de origem, gênero, cor, etnia, profissão, condição econômica, opção política... devendo abarcar, hoje, sem margem à dúvida, o viés da sexualidade, àquele instante, não vislumbrado (expressamente).

Com o passar de seis décadas observamos que, leis, embora fundamentais, mesmo que maravilhosamente esculpidas, à primazia da técnica jurídica e gramatical, não constituem o bastante, não assegurando, por si só, o exigível respeito. Atos de discrímen ainda persistem, a rodo e em larga escala no seio da sociedade, bastando não mais que um singelo olhar à nossa volta. Alguém duvida?

na Antigüidade, mais precisamente entre os atenienses, começara a desenvolver-se a noção de cidadania, apesar da divisão em três distintas classes: cidadãos, metecos e escravos... Daí a importância de se agregar, aliado àquela, os conceitos de democracia e igualdade.

Hoje, contudo, o que mais se verifica é a falta de cidadania ou, noutras palavras, de acesso à cidadania, de milhões de seres humanos, diga-se, cidadania efetiva, à sua ampla acepção. Intrinsecamente, todos somos cidadãos, tendo por reconhecidos no papel dos mais importantes e fundamentais direitos, sendo os mesmos: irrenunciáveis, inalienáveis e indivisíveis... No cotidiano, porém, deparamo-nos com o outro lado dessa história, nem tão romântica assim.

Segundo o Aurélio, cidadania é a “qualidade ou estado de cidadão”, inferindo-se desta última expressão o “indivíduo no gozo dos direitos civis e políticos de um Estado, ou no desempenho de seus deveres para com este”. Ao teor da Magna Carta de 1988, tem-se, dentre os fundamentos da República Federativa do Brasil: a cidadania (CF, art. 1.º, II), prerrogativa esta, a nortear toda a Lei Maior, ao reconhecimento e defesa da própria dignidade.

De fato, ademais do não reconhecimento à plenitude da cidadania da população LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais), caminham juntos o preconceito e a discriminação, resquícios do ódio e da ignorância, sendo inúmeros os exemplos disto, não necessitando de maior explicitação. Perguntar não ofende: uma sociedade que pouco reconhece os direitos humanos de significativa parcela de seus cidadãos, inclusos não apenas os direitos sociais, previdenciários e sucessórios, mais aventados, mas, também, os direitos civis e de família (união civil e adoção bilateral, por exemplo) há de ser, realmente, democrática?

No que tange à expressão “homossexualismo”, fora cunhada já há várias décadas pelo médico húngaro Becker Benked que, naquele instante, dirigindo-se ao então Ministro da Justiça da Alemanha do Norte, deu ciência a este para com a incessante perseguição de cidadãos homossexuais por motivos, unicamente, políticos, estabelecendo-se, outrossim, pelo Código Penal do II Reich, em seu parágrafo 175, a cominação da pena de morte para estes casos. Vislumbrava o médico, a “anormalidade” daquela conduta, cujo estudo haveria de pertencer à área médica, apenas, e não à Justiça como desejavam alguns. Termo este, inclusive, presente no Código Internacional de Doenças (CID), analisada sob o enfoque da disfunção mental? No ano de 1985, pronunciou-se, finalmente, a Organização Mundial de Saúde, não mais considerando-a uma enfermidade. Embora usuais, as próprias referências “homossexualismo”, supramencionada, e “homossexualidade”, etimologicamente interpretadas, vêm, por assim dizer, enraizadas de pré-conceitos, uma vez que o sufixo “ismo” diz respeito, justamente, à doença, significando o termo “dade”, assim contida numa das assertivas, uma “forma de ser”.

Os cidadãos LGBT ou, simplesmente, cidadãos!, extirpados quaisquer rótulos, caricaturas e/ou siglas, têm sido, dia-a-dia, desrespeitados em sua dignidade enquanto ser, assistindo-se, não raro, a reiterados episódios de homofobia, desde as pequenas às grandes cidades. Há anos, a propósito, discute-se no Congresso Nacional a tipificação penal do delito homofóbico (tal como o crime de racismo), i.e., cuja motivação da parte do sujeito ativo (vitimizador) dá-se, essencialmente, pela não aceitação do outro ou, melhor, do próximo, frente a sua preferência sexual. Quem ainda se lembra do jovem Edson Neris? que, em plena Praça da República, no centro de São Paulo, veio a ser covardemente agredido pela ação de skinheads, vindo a óbito tempos depois. Mais um triste episódio a afrontar os direitos humanos, não o último, contudo.

Quando da realização da mais recente Parada, supramencionada, vivenciamos, uma vez mais, a perpetuação de condutas de cunho homofóbico, ao ceifar, entre outras graves violências, de outra vida.

Ao surgir da AIDS, referiam-se a esta, alguns, como “peste gay” ou “câncer gay”, em mais um recorte de profundo desrespeito, ao deletério ensejar de perniciosos estereótipos quão os “grupos de risco”.

Em consonância ao relatório “Juventudes e Sexualidades” então divulgado pela UNESCO, numa pesquisa realizada em quatorze capitais brasileiras, no ano de 2000, mas, infelizmente, ainda atual, verificou-se que, das pessoas entrevistadas (discentes, educadores e pais), nada menos do que 27% dos alunos não gostariam de ter de conviver, na mesma sala de aula, com colegas homossexuais, número este que sobe para 35% na visão dos ascendentes daqueles, onde 15% dos alunos ainda consideram o homossexualismo uma doença. Do ponto de vista religioso, para uma boa parte dos adeptos do catolicismo, esta também parece ser a interpretação. Como asseverou, duas décadas atrás, o cardeal alemão Joseph Ratzinger, hoje, Papa Bento XVI: “Ainda que a inclinação de uma pessoa homossexual não seja um pecado, é mais ou menos uma forte tendência a uma maldade moral intrínseca, portanto, uma inclinação que deve ser vista como uma enfermidade” (“Carta aos bispos da Igreja Católica no cuidado pastoral às pessoas homossexuais”, 1986).

Sem embargo, em se procedendo a exegese do nível ético e cultural de uma dada sociedade, basta observarmos quão são tratados os indivíduos que a ela se vinculam. Em comunidades menos desenvolvidas, há de se constatar que os primeiros a serem ofendidos ocuparão, por excelência, as posições já marginalizadas, entenda-se: os portadores do vírus HIV/AIDS, os adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa, os adultos privados da liberdade, as pessoas a alienar o próprio corpo, os silvícolas, os idosos, os afrodescendentes, os pobres, enfim, os homossexuais.

Parafraseando Hannah Arendt: “A essência dos direitos humanos é o direito a ter direitos”.

*Ivan de Carvalho Junqueira, Bacharel em Direito, autor de Dos Direitos Humanos Do Preso, ABC dos Direitos Humanos e Do ato infracional à luz dos direitos humanos. Contato: ivanjunqueira@yahoo.com.br

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