“Se alguém me contasse eu não acreditaria”, foi a fala do Gui logo que me viu levantar às três horas da manhã para ensaiar flauta. A noite foi boa, sim. Fiz de tudo para que o ego dele não balançasse. Sei, está virando um hábito. Toda vez que ele vem, eu faço isso. Soa incomum sair de perto do namorado no meio da madrugada. Quanto mais no nosso caso, que nos vemos a cada quinzena. Ficaria muito caro e cansativo para ir todo fim de semana para São Carlos. Idem para ele vir para São Paulo. A enfermagem suga toda a energia do meu amor, e nem ligo quando telefona dizendo que está um bagaço ou que tem plantão no fim de semana.
Os sábados solitários já seriam justificativa suficiente para arrumar um passatempo musical. O espanto do Guilherme é que sempre fui roqueira. Uma guitarra, mesmo uma bateria seriam previsíveis. Mas uma flauta? Aos poucos estou explicando os motivos a ele. Participar do coral do campus, preço em conta, o menor incômodo aos vizinhos, e segue a lista dos porquês.
Desde o primeiro ano de faculdade que pertenço ao coral. De início minha participação se restringia ao canto. Quase dois anos exercitando as cordas vocais às sextas-feiras. Era uma sauna para relaxar os nervos depois da aula da tarde. Da minha turma, quatro amigas. O professor de desenho arquitetônico II encerrava a aula e a gente ia para cantina, tomava um lanche e corria para o anfiteatro.
Dos poucos instrumentos que o coral contava, gostei da flauta. Soprei umas vezes, e que fracasso. Mas sei lá por que determinei que eu ia dominar, ia ter destreza. O universo conspira a nosso favor quando nos propomos a fazer algo. E não é que achei um estudante de jornalismo que tocava razoavelmente bem. O rapaz era ótimo. Tá, na terceira aula eu falei que tinha namorado e que até podia pagar as aulas se ele quisesse. Tudo para que ele abandonasse a cara de cachorro faminto e me desse o que me interessava: aulas de flauta. Ele se tocou e ficamos bons amigos.
Superei o mestre, segundo ele, já ao término de seis meses. Os treinos solitários nas várias madrugadas ajudaram nesta empreitada. A flauta acima de tudo foi uma terapia. Das vezes que quis detonar o professor de estatística, aquele engenheiro bêbado e desbocado, bastava eu soprar flautas à noite que no dia seguinte estava zen e que ele rosnasse o que quisesse. A solidão de minha kitinete igualmente fora aplacada pelo som e companhia de minha amiguinha. Até o momento fiz duas apresentações no conservatório da faculdade de música.
No terceiro ano de curso, quando a galera diz que a faculdade vai ou racha, quase pendi para a música. Pensei sinceramente trancar a faculdade de arquitetura e me atirar na de Música. Cheguei até assistir aulas como ouvinte. Mas no fim notei que minha praia era mesmo o ganha-pão de Lucio Costa. Música para fortalecer o espírito, acalmar os nervos. Ouvir flauta me inspirava nos trabalhos urbanísticos.
Tudo bem. Só que preciso moderar a paixão pela flauta para não se tornar um escapismo. Nada a ver deixar meu gato nas cobertas solitário.
(A garota deu um sorriso. Saltou do parapeito da janela. Guardou a flauta na caixa. E correu para debaixo das cobertas com seu amor enfermeiro).
* Ronaldo Duran, romancista, colabora em jornais. Contato: ronaldo@ronaldoduran.com
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