ECA & DIREITOS HUMANOS
Ivan de Carvalho Junqueira*
Há determinadas coisas na vida que, com o passar do tempo, percebemos não ser mero acaso, quão uma simples coincidência. Ademais dos fatos, alguns bastante tristes, outros tremendamente alegres, mas, sobretudo, marcantes, encontramos determinadas pessoas, destacando-se, por evidente, entre as quais, em especial, as significantes. Por estas, exatamente, não deixamos diminuir ou mesmo morrer a chama da utopia à crença no próximo, e não apenas no outro, como se não nos pertencesse, na ânsia pelo devido respeito e por cidadania ou, melhor, pelo seu exercício.
Ivan de Carvalho Junqueira*
Há determinadas coisas na vida que, com o passar do tempo, percebemos não ser mero acaso, quão uma simples coincidência. Ademais dos fatos, alguns bastante tristes, outros tremendamente alegres, mas, sobretudo, marcantes, encontramos determinadas pessoas, destacando-se, por evidente, entre as quais, em especial, as significantes. Por estas, exatamente, não deixamos diminuir ou mesmo morrer a chama da utopia à crença no próximo, e não apenas no outro, como se não nos pertencesse, na ânsia pelo devido respeito e por cidadania ou, melhor, pelo seu exercício.
Não sabemos, ao certo, acerca do início e término de uma vida, poderíamos discutir tal perspectiva por anos que, ainda assim, dificilmente chegaríamos a um resultado sobre isto. Contudo, uma vez dispostos aqui, neste mundo, temos de nos entregar e colaborar para que num certo dia, esperamos o mais breve, possamos, conjuntamente, unidos os esforços, atingir um novo horizonte, à colheita de melhores frutos. Num lugar em que todas as pessoas, independentemente de qualquer fator, rechaçadas as distinções por etnia, cor, gênero, credo, idade, liberdade sexual, enfim, possam ser tratadas com igualdade e dignidade.
Propomos, tempos atrás, a realização de uma oficina, em sala de aula (disposta no refeitório), tendo por foco uma abordagem de natureza crítica e construtiva a enfocar o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA e os Direitos Humanos, com alunos entre doze e dezoito anos e, excepcionalmente, até vinte e um anos incompletos. Um ambiente educativo como outro qualquer, a despeito das muitas dificuldades, carecedor – ainda –, de efetivo e maciço incentivo e apoio, a não ser pelo fato de estarmos numa unidade de internação da Fundação CASA/SP, instituição na qual laboramos há mais de três anos.
Resolvi, então, entregar o projeto, tal como o exigível. Haveria, como de praxe, de passar pelo crivo da coordenação e direção.
Tão logo ratificada, competiu-nos efetivá-la, colocá-la in concreto, na esperança de que, ao menos, alguns deles, pudessem se interessar. Ademais disso, ter de competir com outras oficinas, além do xadrez e futebol, realmente, haveria de ser tarefa das mais complicadas, pensávamos. Se já o seria para nós mesmos, imaginem para aqueles para quem, diariamente, por até três anos, o sol nasce quadrado. Não duvidamos – jamais –, do caráter pedagógico da medida socioeducativa, assim como o disciplinado pela Lei n.º 8.069/90, ainda que de internação (em que pese todos os questionamentos em torno da privação de liberdade). Sentimentos de angústia, tristeza e solidão, não raro, caminham juntos, tet-a-tet com o adolescente, ao curso da execução, razão pela qual, sem dúvida, deve ser excepcional. Não nos esqueçamos disto. O ECA não se esqueceu.
Desde o princípio, quando da propositura de uma Oficina de Direitos Humanos, a enfocar teoria e prática, direitos e deveres, Constituição Federal e Estatuto da Criança e do Adolescente, pensei adentrar em terreno espinhoso, ora permeado por amarguras, a começar pela falta de entendimento do que sejam àqueles, cuja (des)construção origina-se, a bem dizer, já no seio da sociedade, imersa no senso comum.
Basta observarmos ao nosso redor, num país que, de acordo com pesquisas, ressalvadas as exceções, ainda crê serem aqueles tão-só para “bandidos”, e que o ECA, não obstante a completude de sua maioridade, não serviria senão ao acobertamento de atitudes de adolescentes, estes seres complicados e de difícil trato (é o que imaginam) e que, no repente, reduzir a idade de responsabilização penal para 16, 15, 14, 13 anos... há, infelizmente, dezenas de projetos no Congresso sob este prisma, a despeito de variadas outras iniciativas a clamar pela adoção de pena de prisão perpétua, oxalá, capital, que, como num toque de mágica, tudo seria resolvido à contenção da alardeada criminalidade, em que pese 90% dos delitos cometidos no Brasil terem por respectivos autores adultos e não jovens e que sendo estes os protagonistas, incidirem suas condutas, invariavelmente, sobre o patrimônio das vítimas e o tráfico ilícito de drogas, e não contra a vida.
Começamos nosso trabalho, em cada qual dos quatro módulos, sob o olhar, pois, da desconfiança. O ambiente socioeducativo constitui um singelo recorte, a despeito do sancionamento, propriamente dito, de toda a elevada carga de estigmas e discriminações observados na coletividade, onde adolescentes em conflito com a lei transparecem como monstros ou anormais.
A despeito dos bons servidores, perante os quais rendemos mais que merecidas homenagens, responsáveis e comprometidos com a constante melhoria de suas ações, os quais ainda vêem nossos adolescentes como adolescentes e não como infratores, muitos outros, à contrapartida, trazem consigo certa perversidade, onde os chamados menores são números, insignificantes.
Ao iniciar da referida oficina, pouco sabiam os adolescentes, por falta mesmo de acesso à educação, acerca dos “direitos humanos” e de seus direitos e deveres enquanto cidadãos (não deixam de sê-lo, ainda que privados da liberdade). Mas, para aqueles que, uma vez coisificados e subestimados por alguns, andar de cabeças sempre baixas e mãos para trás ou pedir licença centenas e centenas de vezes é tarefa diária, apresentar-se-ia improvável a perspectiva.
Com respaldo na Constituição Federal, de 1988 e no diploma infanto-juvenil, e à luz da Declaração Universal de Direitos Humanos, de 1948, aos poucos, didaticamente, foram assimilando, ao reconhecimento, de cada adolescente, como um sujeito de direito e autor de sua própria história.
Foram realizados mais de três dezenas de encontros. Ainda que competindo com várias outras atividades, ministradas de forma simultânea, atingiu-se o número de quase quinhentas presenças, consolidando a média de, aproximadamente, quinze adolescentes por encontro, findo pouco mais de dois meses, até a saída daquela unidade. Ressalte-se que, diversamente das outras, a presença de cada qual dos adolescentes nunca se deu de maneira compulsória, mas flexível, facultada a todos os interessados. Seria, certamente, uma grandiosa contradição defender a plataforma emancipatória do ECA, sepultada a concepção irregular e “menorista” da precedente legislação de 1927 e 1979, oferecendo-lhes atividade de cunho obrigatório.
Muitos acabam se acostumando com meninos e meninas de rua que, desde muito cedo, freqüentam praças e asfaltos, à procura de um lar e de comida; ou, talvez, em malabarismos ao fechar dos semáforos de trânsito ou, ainda, vendendo balas e doces ao adentrar de cada vagão do metrô. Sandros e mais Sandros, em Candelárias e ônibus... Crianças de sete anos laborando em lavouras de laranja ou cana de açúcar; prostituindo-se, aliciadas que são pelo turismo sexual, trocadas, alienadas. Seduzidas pela mercancia ilícita de drogas, preferindo “viver pouco como um Rei, que muito como um Zé”, tal como canta Mano Brown, dos Racionais MC’s. Mortos, precocemente, aos quinze ou dezesseis anos, não mais que isto, no luto de companheiras e filhos, os filhos dos filhos, em busca de cidadania.
Sem margem à dúvida, deve-se buscar, dentre todas as possibilidades, uma real mudança diante da realidade aparentemente estática das relações sociais, in casu, dos adolescentes em conflito com a lei, bem mais por razões éticas do que de ofício. Afinal, por também serem humanos e acima de tudo cidadãos, gente como a gente, devem ser respeitados. Alheio, pois, a qualquer juízo de valor, sem que com isso se comprometa o premente luto às vítimas, o que se mostra irrenunciável.
Fora uma experiência maravilhosa. Um aprendizado para muito além da oficina, mas de vida.
* Bacharel em Direito. Seu mais recente livro publicado é: “Do ato infracional à luz dos direitos humanos” (2009).
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