Ela vinha nesse pé. Sem comer, com sede. Uns dois dias sem banho. Mas o que é isso comparado ao caos ao redor? Está viva, isso é o que contava. Há tristezas tamanhas, comoções gigantescas, que o corpo, já extremamente exaurido por sacudidas, soluços e choros, acaba por deixar-se entregue a devaneios. Quando a moça viu estava na maior gargalhada.
Com a senha na mão, a máscara no rosto e o corpo cansado da espera, a moça de trinta e poucos anos foi acometida pelo surto de riso. Pessoas aos encontrões para lá e para cá. Via-se nela o sinal de desespero de quem perde a orientação, de ausência da energia que nos conduz de casa para o trabalho e do trabalho para casa, de extinção momentânea da força que nos faz enfrentar as privações e temer perigos e buscar o prazer.
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O incontrolável acesso de riso da moça incomodava uns chorosos considerando blasfêmia alguém rir quando as pessoas todas entristecidas pela perda da filha, da mãe ou do pai soterrados. Quanto mais com os corpos amontoados num Galpão em Teresópolis, por falta de espaço no IML da cidade. Outras tantas pessoas, padecendo a dor da perda, mal tinham tempo para notar fosse o sofrimento fosse o riso de quem quer que seja.
Os bombeiros, enlameados, que transitavam por ali, rumo aos locais críticos, pouco se importavam com o riso da moça. Eles abraçavam a tarefa de tentar socorrer outras tantas vidas, ou pelo menos trazer tantos os corpos dos escombros a fim de dar aos parentes sobreviventes a possibilidade de conforto. Pois saber-se do paradeiro do familiar, ainda que morto, é melhor que a insensível incógnita.
Os profissionais da saúde, sinônimo de empenho. Polícia, bombeiros, todos fazendo seu melhor. Voluntários de serviços essenciais ali a socorrer os mais necessitados.
Dezenas e dezenas de pessoas com fotos exibindo o riso clicado durante um churrasco, ou uma festa de aniversário de criança ou da vovó comemorando 80 anos, ou uma colação de grau do garoto concluindo o colégio, ou uma viagem de camping onde a menina flertando com um rapaz. Cada foto segura por mãos trêmulas, fatigadas, desesperadas, desconsoladas, quase resignadas. Máscaras enfiadas nos narizes a proteger contra o acre cheiro de defuntos em estado deploráveis.
De repente, o riso dela sumiu tão rápido quanto surgiu. Em meio à espera exaustiva, as pernas bambeando, e a teimosia evitando que se sentasse ou que saísse defronte do Galpão. Na cabeça, as imagens do marido, sorridente, brincalhão. Tinha vezes que o pau comia entre eles. Sempre quando ele vinha com a conversa mole de que tinha feito horas extras, mas o malandro estava no bar tomando umas com os amigos. Nada de traição. Ela é que não gostava nem da mentira nem do bafo da cerveja.
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Ela o amava muito. Na perda, ela pôde notar o quanto ele era a sua alma gêmea.
E a avó? Praticamente a criou. A mãe, muito nova, tendo que ganhar o pão dos filhos, passava o dia inteiro fora de casa. Alguém tinha que ficar com as crianças. A moça podia ver a avó agarrada à máquina de costura. Todo dinheiro ganho, que não era muito, servia para completar a renda familiar. A moça sacudiu a cabeça, como para fazer desaparecer as imagens do marido e da avó, mortos pela tragédia causada pelas chuvas.
Deu espaço para a passagem de mais um caminhão frigorífico que se dirigia ao galpão.
O acesso de riso anterior se explicava. Tanto o marido como a avó aparecem sorrindo nas fotos que a moça segura entre os dedos. O sorriso da foto, mostrando a arcada dentária, poderia ajudar na identificação dos corpos, se necessário fosse. Além disso, as fotos traziam um sorriso genuíno, de um momento divertido.
O riso histérico da moça talvez tenha sido uma tentativa de ressuscitar a alegria ali impressa para minorar a opressão que a atmosfera de dor e de desalento provocava nela naquele instante. Ela, diarista, igualmente buscará se erguer, tocando a vida, ainda que à sombra da perda. Ao lado de milhares de outras pessoas, a vontade de viver da moça servirá para reconstruir a cidade.
ronaldo duran, escritor.
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